Rappers não escrevem mais letras? Como o 'punch-in' está mudando a forma de fazer rap
Avanço da tecnologia fez com que letras de rap ficassem mais 'improvisadas'. Ao g1, Negra Li, Major RD e Brocasito explicam se tendência que domina EUA tem ve...

Avanço da tecnologia fez com que letras de rap ficassem mais 'improvisadas'. Ao g1, Negra Li, Major RD e Brocasito explicam se tendência que domina EUA tem vez no Brasil. Do protesto ao lifestyle: como a técnica de Punch-In mudou o jeito de fazer rap Desde que o rap é rap, o estilo foi pautado pela força das narrativas e da escrita. São letras que mesclavam a realidade das ruas com metáforas e outras figuras de linguagem. Ser um bom rapper era ter autenticidade e habilidade para criar esses versos. Mas a tecnologia e a mudança no perfil dos ouvintes de rap parecem estar abrindo espaço para uma outra forma de criar: o "punch-in". Não tem caneta ou papel. Hoje, para a maioria dos rappers americanos as músicas são criadas com microfone e batida, tudo improvisado. Grandes nomes internacionais do estilo como Doechii, Lil Wayne e Jay-Z confirmaram isso em entrevistas recentes. No Brasil, Major RD e Mc Cabelinho estão entre os adeptos do "punch-in". "Eu tinha mais facilidade de fazer rima na hora do que compor", contextualiza Major RD ao g1. "Quando eu fazia música com os caras, eu ficava ali enrolando, mexendo no telefone fingindo que estava escrevendo, quando chegava a hora de gravar eu começava a rimar na hora." Hoje, grandes nomes da indústria nacional e mundial do rap, como Doechii e Playboi Carti, utilizam da técnica conhecida como "punch-in” para criar suas músicas e atingir números astronômicos. Entenda: Mas o que é o 'punch-in'? O "Punch-In", ou "freestyle", é uma técnica de criação musical levada no improviso, utilizando a batida instrumental; Os versos não são escritos no processo, apenas gravados em partes curtas, muitas vezes com trechos balbuciados, sem palavras; Antes, com as limitações tecnológicas, os rappers chegavam com letras prontas para as sessões de estúdio; Hoje, é possível fazer quantas regravações o artista quiser, dispensando a necessidade de uma composição prévia. Jay-Z foi um dos primeiros a popularizar esse método nos anos 1990. Conhecido por improvisar suas letras com base em experiências pessoais, ele inspirou as gerações seguintes. Jay-Z durante a cerimônia do Hall da Fama do Rock, em 2021 David Richard/AP Travis Scott foi testemunha da gravação de "Magna Carta", álbum icônico de Jay-Z. "Eu achava que essa história de freestyle era mito até ver ele entrar no estúdio... mano, ele improvisou durante o álbum todo", disse Scott a uma rádio americana. Ele produziu algumas faixas do disco. A existência do "punch-in" só foi possível por conta da modernização das gravações. Antes, músicas eram gravadas de forma analógica em fita. O processo era muito mais complexo e caro, então o rapper tinha que chegar com tudo já criado. Isso obrigava os artistas a chegarem com letras praticamente prontas, já que havia uma escassez na disponibilidade de horário nos estúdios e a hora era muito cara. "Se você está sentindo o beat e improvisa ali na hora, isso pode ser tão bom quanto uma composição", opina Brocasito, rapper e produtor baiano, em entrevista ao g1. Com o digital, foi possível usar múltiplas gravações sobrepostas, técnica conhecida como “multitrack”. O recurso possibilitou que artistas tivessem mais liberdade criativa para explorar rimas variadas em cima das batidas. De Jay-Z ao SoundCloud O "punch-in" ganhou ainda mais força nos anos 2000 com nomes como Lil Wayne, Young Thug e Future, sendo impulsionada pelos “SoundCloud rappers" na década de 2010. O SoundCloud, plataforma de publicação de áudio, e a facilidade de encontrar na internet ferramentas de produção musical indicaram uma nova era no rap. Com isso, jovens talentos lançaram suas primeiras gravações. Esse movimento fez nascer o trap e as letras improvisadas sobre lifestyle, objetivos de vida e saúde mental. Chief Keef, Xxxtentacion, Juice WRLD e Playboi Carti são alguns dos representantes dessa leva. Apesar de ser não ser uma novidade no rap, o punch-in não é bem aceito por alguns veteranos. O produtor americano Just Blaze já disse que "nem todos são bons ou capazes de fazer isso". Ou seja, há rappers que vão para frente do microfone sem letras escritas pensando que são o Jay-Z. Obviamente, estão bem longe disso. E no Brasil? Por aqui, a história é parecida, mas envolve um tempero brasileiro. Os Racionais MC’s tinham suas letras (escritas antes das gravações) focadas na narrativa e na realidade que viviam. Outros nomes como Thaíde, GOG e Facção Central tinham acesso limitado a grandes estúdios. Então, tudo precisava ser muito bem ensaiado, para não rolarem erros. As batalhas de rima e a tecnologia, claro, mudaram um pouco essa mentalidade. Rappers como Emicida costumam anotar pequenas frases em cadernos e desenvolviam o restante da letra em estúdio. Outros, inspirados pelos ídolos americanos, passaram fazer tudo totalmente no improviso. O que dizem os rappers brasileiros? Negra Li A cantora Negra Li Divulgação Para a cantora e compositora Negra Li, essa técnica sempre existiu como recurso dos artistas de destravarem bloqueios criativos. Ela, que despontou nos anos 2000 e segue em atividade, diz que utiliza o "punch-in". Mesmo assim, ela vê com cautela o uso: letras que utilizam dados históricos precisariam de "um estudo maior". Mesmo assim, ela não condena os artistas novos que utilizam. “Eu não vou nunca criticar quem está fazendo, quem tá vencendo, quem está contrariando as estatísticas. É melhor essa pessoa estar usando da arte dela para fazer o seu dinheiro do que estar fazendo algo criminoso.” Major RD Major RD em sessão de estúdio Reprodução / redes sociais O rapper carioca Major RD, cria das batalhas de rima e apadrinhado pelo rapper Xamã, diz se considerar "um infiltrado no sistema mainstream". A ideia, segundo ele, é "hackear o sistema". Inspirado por bandas de rock como Kiss e Slipknot, Major vê no "punch-in" uma forma de conseguir improvisar com rimas fortes em cima dos beats enérgicos. Ele se empolga com o momento em que está vivendo em estúdio e consegue passar a sensação de viver intensamente a vida. Major enxerga nas batalhas de rima a principal forma de melhorar a capacidade de improvisar. Em casa, ele também costuma deixar um filme no mudo e tentar improvisar dublagens. São exercícios que, segundo ele, podem aumentar a técnica e melhorar o desempenho no estúdio. "As minhas músicas 'só rock', todas as três são músicas completamente zoeira... Mas aí se você prestar atenção, em algum momento vai ter uma crítica, sobre o presidente, polícia, ou governo", ele exemplifica. "Existem novos consumidores no rap e eles não querem ouvir música sobre crítica social, tá ligado? Eles consomem mais esse tipo de rima porque eles se identificam mais esse estilo de vida. Eles não vivem o caos que a gente vive na favela. Essa galera nova... a playboyzada." Brocasito Rapper Brocasito divulga imagens do seu álbum #OCARAMAU Reprodução / Mídias sociais Brocasito, rapper e produtor oriundo de Juazeiro (BA), conheceu a música por meio da igreja e começou a lançar projetos na cena underground do trap aos 15 anos. Para ele, o "punch-in" é o carro-chefe da sua forma de criar música. Ele acrescenta que os "softwares pirateados" foram importantes para dar uma chance aos artistas periféricos. "Acho que flui melhor: você grava na hora pelo celular, sem muita complicação. É só você ter ali e ter a vibe do seu som e o que você quer passar." Mais do que uma tendência passageira, o "punch-in" se tornou mais uma ferramenta na criação das músicas. Uma ferramenta que dominou os estúdios americanos, mas ainda busca mais espaço no Brasil.